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domingo, 3 de abril de 2011

Os espelhos

Mês passado comprei um espelho. Fazia tempo que precisavamos de um objeto deste tipo, porque o último que tínhamos foi destruído pelos nossos netos em uma daquelas visitas ruidosas de final de semana. Minha esposa gostou do que adquiri, especialmente por uma especial característica: a imagem que o espelho apresentava era da pessoa rejuvenescida. Eu também havia notado esta anormalidade na loja, porém como sempre fui cético, optei por atribuir a visão do meu rosto mais jovem a uma alucinação momentânea .

Com mais pormenores o que ocorreu foi o seguinte: trouxe o dito cujo embrulhado e ao chegar em casa disse a minha esposa que agora ela já possuía um espelho novo, para que pudesse se contemplar. Ela considerou minha brincadeira de mau gosto, pois há muito tempo deixamos de ser jovens e de corresponder aos padrões de beleza socialmente aceitos. Porém para surpresa minha e dela o milagre ocorreu: aquela que jurei amar eternamente, na saúde e na doença, desembrulhou o nosso espelho e incrivelmente se viu com o esplendor dos 20 anos.A esta altura estava eu na cozinha saboreando o divino néctar que nós mortais chamamos de cafezinho, mas fui bruscamente interrompido de tão sublime momento por gritos histéricos provenientes da boca de minha mulher, tendo que me deslocar para saber o motivo de tamanho alvoroço. E foi assim que pude ver minha eterna namorada tão linda e jovem quanto a primeira vez que a tinha visto, bastando para isto observar o reflexo de minha esposa, estando ela posicionada em frente àquela mágica tela. Para coroar o extraordinário acontecimento também vi minha imagem de jovem como que magicamente ressuscitada.

Parecia uma espécie de bruxaria. Eu fiquei assustado e quis sair de frente do espelho, porém ela não quis, achando maravilhoso se ver mais jovem e bela. Pensei em chamar os médicos, curandeiros, a polícia, os padres, a imprensa e os curiosos, mas ela me respondeu com um sonoro e autoritário não. Julgou que deveríamos ficar com o espelho, mantendo sigilo absoluto, de forma que ninguém tomasse de nós o que ela passou a chamar de divina dádiva. Segundo minha esposa o estranho espelho era uma compensação de Deus para nossa vida sofrida, de muitas doenças e pouca aposentadoria, filhos ingratos, jovens que não respeitam os idosos e sobretudo uma forma de amenizar aquele sentimento de estar a cada dia que passa ficando mais feio e próximo da eterna noite  que chamamos de  morte. De minha parte pensei com meus botões que já que havíamos sido presenteados pelas potências do além, a loja deveria devolver o dinheiro com que paguei o espelho, mas creio que este tipo de argumento não é bem aceito no mundo do comércio.

Tentei fugir do encantamento do espelho, encantamento este que seduziu e viciou a minha mulher desde o primeiro instante. Agora ela que sempre cuidou muito bem de mim, só encontrava tempo para se ver mais jovem e mais bela. Inicialmente procurei seguir normalmente minha vida. Acordando às 6 da manhã, tomando meu desjejum e indo jogar dama com meus amigos na praça, seguia minha rotina habitual, com a diferença que agora era eu mesmo quem preparava o café, já que minha esposa permanecia hipnotizada por aquele objeto quase que 24 horas por dia.

Porém algo em mim havia mudado radicalmente, profundamente. O que sempre me pareceu saboroso, agora era insípido. Passei a achar enfadonhos meus amigos, tão velhos e sempre falando de velhice. Passei a pensar na minha juventude, época em que certamente eu não gozava da felicidade completa, mas tinha sonhos, esperanças, projetos, acreditava que poderia ter uma vida mais interessante, longe desta monotonia. Falei desta apreensão a minha companheira e ela me respondeu dizendo que o espelho nos concedia uma segunda juventude e que ao nos vermos refletidos no espelho mais jovens podíamos nos esquecer da finitude da existência , da frustração pelo progresso do envelhecimento e pela deterioração física que o acompanha, fazendo com que os velhos sejam desprezados por não participarem ativamente das atividades produtivas e estarem distanciados dos padrões de beleza em voga na sociedade.

Tentei rebater tal discurso, dizendo que não deveríamos dar importância para o que diz a “sociedade”, este ser abstrato que parece servir apenas para criar sentimentos derrotistas nas pessoas, contudo não obtive êxito. Mas resolvi comprar um outro espelho, um espelho normal para demonstrar a minha mulher que não precisávamos daquela coisa diabólica.

Procurei o mais simples dos espelhos simples. Certifiquei-me de ver nele minha imagem refletida com fidelidade. Chegando a nossa casa, instalei o novo “morador” em nosso quarto de casal e chamei minha esposa, mas ela me respondeu que iria daí a uns instantes, pois se miraria no espelho mágico um pouquinho mais.

Enquanto isso, olhei-me mais uma vez no espelho e fiquei feliz por ver minha imagem real refletida. Felicitei-me por ter tido a idéia da compra. Em conseqüência algo incrível ocorreu. O meu reflexo me respondeu dizendo que a minha idéia era brilhante e genial, como é usual em pessoas geniais e brilhantes como eu. Fiquei estupefato.Em seguida minha mulher ingressou no quarto e demonstrando preocupação, quis saber o motivo da minha aparência assombrada. Mostrei a ela o novo espelho e ela respondeu com desdém afirmando que era um espelho banal, sem ter nenhum pingo da magia do outro que nos tornava belos. Ato contínuo a imagem dela respondeu que suas palavras eram sensatas e extraordinariamente inteligentes, como era de esperar duma Deusa da Sabedoria e da Sensatez de tamanha magnitude. Fiquei mais estarrecido ainda, mas minha mulher me chamou para outro cômodo e me disse que assim como o espelho anterior nos proporcionava um reflexo jovem, este recém chegado reconhecia e homenageava os nossos dotes intelectuais e morais, sendo complementares, os dois, dando a devida valorização tanto a nossa aparência, quanto a nossa essência.

Com o passar do tempo me acostumei aos espelhos e a forma benévola com que nos refletiam. Afastei-me do convívio social, vendi os livros, o aparelho de som, a televisão e queimei as fotografias de família. Minha esposa e eu rompemos com o mundo e o desprezo dele às pessoas idosas. Agora vivendo na órbita dos nossos espelhos, nos sentimos belos, inteligentes, capazes, correspondemos ao ideal grego da perfeição de corpo e alma...

Mas talvez nos falte algo... Não sei, preciso dialogar com minha parceira...

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