Pesquisa

terça-feira, 23 de setembro de 2014

Cabeleira


Regina caminhava pela rua com seu cabelo Black Power. Dirigia-se para um ponto de táxi no centro da cidade. No caminho, trabalhadores da construção civil soltaram gracejos racistas:
_Olha a sarará!
_Tão bonitinha, tão novinha e com preguiça de ir no salão.Ó a falta que uma chapinha faz.
Dentre outras preciosidades do gênero. Ela pensou em responder, entretanto estava com pressa e no fundo tinha pena dessas pessoas reprodutoras de preconceitos e escravas de conceitos de beleza artificial e excludentemente gerados. Seguiu seu caminho em paz, até mesmo porque está se sentindo cada vez mais bonita ao valorizar suas características étnicas. E seu amado a tinha como a suprema princesa de ébano.
Quando estava quase chegando ao local em que tomaria um táxi foi surpreendida pelo reencontro com uma antiga amiga.
_Regina, quanto tempo? Que maravilha te rever.
_Puxa Patrícia, deve fazer uns dois anos que não nos vemos. Desde a festa de formatura no Ensino Médio.
A amiga começa a falar mais baixo e em tom levemente pedagógico:
_Puxa Regina, ouvi o que aqueles homens mal-educados te falaram. Infelizmente, ninguém valoriza a beleza natural. Se a mulher de cabelo crespo, mesmo sendo tão linda como você, não alisar, vai ser alvo de críticas de tudo quanto é lado_depois de uma breve pausa, ela retoma o discurso_Desculpe a sinceridade, mas eu achava você muito mais bonita antes com os cabelos alisados e bem tratados. Não que você esteja feia, muito pelo contrário. Mas...
Regina já estava ficando cansada deste tipo de comentários desde que passou a usar o cabelo afro. Então resolveu encerrar a conversa:
_Patrícia, querida, foi um prazer enorme te rever, mas estou atrasada para um compromisso.
_Já sei, salão de beleza. Pra relaxar e alisar.
Regina gritou interiormente que essa menina estava fazendo doutorado em chatice. Porém, respondeu educadamente como aprendeu com a mãe:
_Na verdade, estou indo para um ensaio fotográfico.
_Ensaio fotográfico!? Pra qual revista?
_Você não deve conhecer, é uma revista internacional. E por falar nisso, você mora no mesmo endereço dos tempos da escola?
_Moro.
_Então depois eu passo lá pra pegar aquele DVD da Beyoncé que te emprestei. É que eu vou pra Paris mês que vem a trabalho e vou assistir à diva nas horas vagas. Beijos querida, vou pegar este carro. Táxi!
Regina se foi e Patrícia ficou sozinha, com a inveja corroendo o coração.



segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Fernando

Fernando estava no shopping center sentindo-se perfeito, como sempre. Afinal, não era qualquer um que tem o privilégio de ser branco, bonito, corpo esculpido em academia,de ter olhos azuis, de ser heterossexual, politicamente conservador e cristão, porém sem se ligar a dogmas e a liturgias.
Além de tudo isso, era rico, invariavelmente dirigindo carro do ano, trajando roupas de grife e portando Iphone de última geração. Sempre foi amado por todos, exceto pelos invejosos e ressentidos. Frequentava o curso de ciências sociais, porque era fácil passar e assim podia continuar recebendo mesada dos pais. Mas ele sabia que seu futuro era brilhante: seria presidente deste país de merda, visitaria a América e faria do Brasil o mais fiel parceiro dos ianques.
Mas eis que uma celestial visão o afasta da umbilical contemplação: uma linda caucasiana,legitimamente loura, com os olhos luminosamente claros, um anjo talhado para ser a princesa de Sua Majestade, Fernando III.Ela estava parada sozinha e nosso herói sabia que não resistiria aos encantos dele.Juntos seriam o casal perfeito e o resto do mundo ficaria encarregado de estender os tapetes vermelhos.
Enquanto ele realiza a charmosa aproximação, uma outra garota se acerca do cobiçado anjo e as duas se beijam apaixonada e inequivocamente.Em seguida saem de mãos dadas, rindo e conversando, como um casal feliz.
-Malditas lésbicas- vocifera Fernando, perdendo momentaneamente a pose de homem perfeito. Em seguida, tenta recuperar o personagem, entretanto está desolado, com o coração partido. É a primeira vez que não consegue o brinquedo que queria.