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domingo, 24 de abril de 2011

Vick Cristina Barcelona, a liberdade sexual e George Bush

Quem assistiu a Vick Cristina Barcelona, de Woody Allen, viu a sensualidade dos personagens, seus conflitos psicológicos, os interessantes diálogos, a bela trilha sonora, o ritmo ágil e leve, uma amizade resistente, a presença de um narrador da história e a  liberdade amorosa retratada. Quem assistiu Jules e Jim, de François Truffaut, viu tudo ou quase tudo isso. O novo filme de Allen lembra o de Truffaut, tanto por parecerem livros filmados, tanto por tratarem da liberdade sexual-amorosa e da vivência artística como essenciais para a humanidade.

Uma diferença importante entre as duas películas, no que diz ao significado da importância dada à questão sexual, é determinada pelas diferentes épocas de produção das obras cinematográficas. Enquanto Jules e Jim nasceu em um período de intensa e irrestrita repressão sexual, Vick Cristina Barcelona foi gerado no fim da era Bush, com todo o conservadorismo e aversão à arte que a figura do chefe da Casa Branca simboliza. Daí vem, ao meu ver, a oportunidade de uma obra que combina liberdade amorosa e amor pelas artes, nos dias atuais, de forma a ser um contraponto a uma visão materialista e puritana do mundo.

O que fazer então, além de assistir Jules e Jim e Vick Cristina Barcelona e apreciar e vivenciar as artes? Participar dos processos políticos, buscando o melhor para o país e o mundo. Com a benção dos poetas e cineastas.

Narradores de Javé

Narradores de Javé, dirigido por Eliane Caffé, é um belo filme sobre histórias e pessoas. A ação principia quando um pequeno povoado se vê numa encruzilhada: - Ter seus lares destruídos para permitir a construção de uma represa ou salvar o lugarejo, desde que provem o valor histórico da localidade. Como a cidadezinha de Javé não possui monumentos ou personagens históricos, o conjunto de “causos” do povo sobre as origens da cidade é escolhido para funcionar como justificativa para que a região seja preservada. Antonio Biá, um personagem espertalhão, vivido por José Dumont, é convocado para registrar graficamente as histórias que existem na mente e na boca das pessoas simples do lugar. A partir daí, várias situações cômicas e interessantes são construídas, todas elas evidenciando a dificuldade de transpor a oralidade para o registro escrito.

O livro que imortalizaria a “grande história javélica”, não foi escrito. E o “progresso” na sua marcha irrefreável em busca de dinheiro e poder não foi detido, estando a cidade condenada. Mas o povo de javé com sua riqueza criativa permanece. E este povo é homenageado pelo filme, de forma simpática e inteligente, sem pieguice e sem solenidades indesejáveis.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

A Revolução dos Bichos, Lula, a Imprensa e o Povo

Escritor do século XX, George Orwell tratou de temas políticos vitais para sua época, mas que ainda mantêm expressiva atualidade. Uma das suas principais obras, A Revolução dos Bichos, é uma alegoria do Socialismo Real, em que bichos de uma fazenda revoltados com a tirania dos humanos lutam pela tomada do poder sendo guiados pelos porcos.No fim da história os animais triunfam e se libertam da opressão humana, porém passam a ser explorados pelos suínos. O final da narrativa é de um simbolismo impressionante, com os líderes porcos se encontrando com seres humanos de outra fazenda, apresentando rostos com feições humanas.

Porém este grande livro de Orwell é uma obra por demais fecunda e certamente não perde sua importância com o fim do socialismo. Nos dias de hoje assistimos ao governo Lula, a divisão da esquerda que o apoiava, entre fiéis e dissidentes, a mídia beligerante, também divida entre pró e contra o lulismo e o restante da população, a qual, talvez impropriamente, chamaremos de povo, aparentando distanciamento do cenário político brasileiro.

Serão o PT e os seus membros os nossos porcos? Pois se eles chegaram ao poder com a promessa de mudar a forma de governar e seguiram a mesma trilha do PSDB, com poucas diferenças. E a nossa esquerda que apostou em Lula? Com certeza, esta esquerda precisa  aprender esta lição de humildade e se dar conta que não é um homem e um partido no poder que vão solucionar os problemas complexos e seculares de nosso país, todos motivados por nossa terrível desigualdade social. E a imprensa? Será a nossa guardiã da ética? Podemos confiar neste jornalismo que aí está? Lamentalvemente também devemos responder negativamente a estas duas perguntas, uma vez que a imprensa usa da manipulação da informação para atender a interesses dos donos dos veículos de informação.

O experiente jornalista Paulo Henrique Amorim, em seu blog, aprecia usar a sigla PIG que no contexto significa Partido da Imprensa Golpista, ou seja o conjunto de órgãos de jornalismo contrários ao governo de Luís Inácio.Certamente em veículos midiáticos poderosos, como Editora Abril, Organizações Globo etc, encontramos uma forte e desonesta oposição a Lula, com toda sorte de manipulação de informações.Por outro lado será que não poderíamos falar de outro PIG, de tendência oposta, o Partido da Imprensa Governista, representado por Paulo Henrique Amorim, Carta Capital,Caros Amigos, entre outros jornalistas, revistas e endereços eletrônicos que defendem o governo Lula ,silenciando os seus equívocos, enaltecendo os seus acertos e atacando os seus adversários.
Certamente o leitor sabe que Pig é a palavra inglesa para porco e o inglês é o idioma do britânico Orwell e esta coincidência nos permite o atrevimento de estender a analogia de A Revolução dos Bichos para a nossa mídia, com os nossos porcos, tantos os golpistas, quanto os governistas querendo nos conduzir de forma a que possamos ser mais úteis aos seus interesses, isto é na posição de alienados consumistas, crentes em meias verdades.

Mas o que fazer em face desta realidade? Se o PT se alia ao PSDB nas eleições municipais de Belo Horizonte, permanecendo como inimigos no restante do país, que conclusão podemos tirar? Certamente não podemos esperar uma revolução pela via eleitoral, porque a eleição de um candidato é constituída de alianças , que fortalecem as candidaturas, mas deixam os detentores do poder na obrigação de servirem a interesses de pequenos grupos, negligenciando o bem da nação como um todo. Para governar o presidente operário se aliou ao PL, ao PMDB de José Sarney e apoiou a candidatura ao Senado de Newton Cardoso, entre outros lances do jogo político.

A situação é desesperadora, porém ainda existem aqueles que pensam em alternativas .Em sua edição de julho de 2008, a revista Caros Amigos, traz uma entrevista com o advogado Ricardo Gebrim, membro da Coodernação Nacional da Consulta Popular, órgão ligado ao MST. Na conversa com o jornalista José Arbex, o entrevistado discorre sobre a divisão da esquerda brasileira entre os desiludidos com Lula e os que ainda confiam em seu governo e sobre a necessidade de um rompimento com a “centralidade eleitoral”, ou seja a tentativa de transformação unicamente através do voto e que ao invés disto haja a mobilização e a conscientização das camadas populares através da vivência de projetos de interesse social e do contato com literatura marxista. Sem conhecer o trabalho da Consulta Popular (CP) não podemos afirmar se os resultados obtidos ali são profícuos, porém é interessante que aproveitemos a idéia de que é necessário levar uma boa formação às massas para  que o povo não mais seja “bicho da fazenda” conduzido pelos porcos orwellianos, tanto os esquerdistas quanto os direitistas.

Discordo de petistas e tucanos

Marcos Bagno em recente artigo publicado na revista Carta Capital, intitulado "Presidenta, sim"  posicionou- se a favor da utilização da forma 'presidenta' em detrimento de 'presidente', porque temos uma chefe de Estado mulher e desta forma estaríamos dando o justo tratamento a uma representante do sexo feminino. O linguista da UNB principia sua argumentação com o exemplo de que se uma mulher e um cachorro fossem atropelados, os jornais noticiariam que 'eles' foram atropelados. Para o referido autor tal fato se constituiria em preconceito contra gênero incrustado na língua por uma sociedade tradicionalmente machista.
Realmente nossa cultura é machista, mas não creio que o uso da forma 'presidenta' vai resolver este grave problema. Bagno diz que o fato de um cachorro e uma mulher serem citados no plural faria algo como desumanizar a mulher. Talvez, mas não sei. Poderia-se argumentar que neste caso a língua está sendo neutra, não estabelecendo hierarquia entre animais e seres humanos. E por falar em animais, vemos os casos em que a língua portuguesa tomou o caminho de designar a espécie no feminino: as cobras, as baratas, as tartarugas, as abelhas etc. . E para não ficarmos apenas em exemplos extraídos da fauna, examinemos o termo criança, que designa, geralmente, seres humanos bastante jovens, antes de entrarem na adolescência, e que é uma palavra do gênero feminino. De fato, escrevemos e falamos 'as crianças', mesmo se todos os indivíduos aos quais queremos nos referir sejam do sexo masculino. Não acredito que estes tipos de designação sejam atos que denotem feminismo.
Bagno , neste artigo da Carta Capital, não esconde sua preferência ideológica pelo PT, ao criticar asperamente Serra e Marina e ao enaltecer a eleição de Dilma. E creio que é neste plano do ideológico e não do linguístico que esta polêmica, em torno da forma 'presidenta' ,se desenrola. Partidários do governo, políticos ou não, entram no coro da forma 'presidenta', que é uma maneira de Dilma valorizar a sua condição de mulher eleita para um cargo tão importante, mas também de aumentar o seu prestígio como figura pública. Os oposicionistas, na política ou na imprensa, defendem a manutenção do tratamento 'a presidente', porque o vocábulo terminado com 'a' seria uma agressão petista a língua portuguesa. Mas os que eles querem conter, de fato, é a aprovação popular à Roussef.
Para além do ideológico, penso que se as duas formas, 'presidenta e presidente', para designar uma chefe de Estado ,ou de uma instituição qualquer,  do sexo feminino são possivéis dentro do sistema de formação de palavras da língua portuguesa, isto implica que os falantes podem optar por aquela que achar melhor, sem por isso terem que ser tachados de destruidores do idioma ou de machistas. E se as duas já citadas formas são abonadas por gramáticas e dicionários, como disseram o próprio Bagno e Sírio Possenti,acredito que ambas podem ser utilizadas em textos formais, ao gosto do produtor destes textos.
O uso dos falantes e escritores, dirá qual forma se consagrará e ou se as duas coexistirão. Não acredito em quem diz que se usarmos 'presidenta' acabaremos usando 'estudanta', 'gerenta' e coisas do gênero. A língua segue os seus caminhos , consagra usos e exclui outros. 'Embaixatriz ' não obriga ninguém a dizer 'doutortriz'.
A eleição de uma mulher para presidente é certamente um evento simbólico importantíssimo. Dilma pode ser um estímulo para as mulheres, assim como Obama para os negros e Lula para os proletários. Mas só o simbólico não basta. O Brasil precisa de uma política concreta de valorização da mulher, com investimentos em  saúde pública em todos os campos da medicina , mas em especial na ginecologia e obstretícia, com uma educação pública de qualidade, deste o ensino infantil até a pós-graduação, e com o combate á discriminação por gênero sendo tratado como tema transversal nas diferentes disciplinas, combate à miséria e a falta de informação, combate a violência doméstica, uma aplicação efetiva da lei Maria da Penha, coisas deste tipo, que trazem impactos significativos na sociedade. Bem mais significativos, pelo menos, do que uma mera mudança de letra, ou fonema,na terminação de uma palavra.
Texto de Marcos Bagno disponível em: http://www.cartacapital.com.br/politica/presidenta-sim

domingo, 17 de abril de 2011

A revolta dos ajudantes de Papai Noel-inacabado

Dezembro, mês do Natal. No Pólo Norte, mais precisamente nas propriedades do poderoso Papai Noel trabalha-se intensamente na produção de presentes que serão comercializados nas lojas do mundo inteiro. Embora exista o mito de que Papai Noel seja um filantropo, na realidade o bom velhinho não passa de uma engrenagem do sistema capitalista.
O período natalino é a época de ouro do consumo. O sentido religioso da festividade está praticamente esquecido. Sai o Menino Jesus, venera-se Santa Claus. A publicidade propaga o consumismo e os pais atacam as lojas. Para que este roteiro não falhe, é imprescindível que as casas comerciais estejam devidamente abastecidas de produtos. E é para que a comédia natalina não saia de cartaz que trabalham os duendes, os ajudantes de Papai Noel, sem renumeração, sem férias, sem convênio médico, sem vale alimentação e outros benefícios trabalhistas.
O estágio atual da nossa civilização repudia o trabalho escravo. Entretanto, na temível e gigantesca fábrica do Papai Noel milhares e milhares de duendes trabalham incessantemente na produção de brinquedos, aparelhos eletrônicos e outras quinquilharias que funcionarão como presentes natalinos pelo mundo todo. Os cidadãos, confortáveis em suas residências, nem desconfiam das condições desumanas de trabalho a que os inocentes estão submetidos.
Papai Noel, ardiloso negociador, obteve junto à Organização Mundial do Comércio direito de exclusividade no abastecimento de produtos para o Natal. O que significa muito dinheiro para o bom velhinho e muita opressão para os dóceis duendes.A mão de obra não renumerada dos ajudantes de Papai Noel garante uma ótima margem de lucros

A revolução em marcha-fragmento

A reunião


   Naquele primeiro de janeiro de 1961 estávamos na casa de Juan Manoel de Mayo, nosso supremo líder desde o princípio. Ele fumava charutos copiosamente e dizia que deveríamos destruir o capitalismo no mundo e assegurar um futuro sem injustiça e sem opressão para nossos filhos e netos. Um médico argentino também marcou presença na reunião e afirmava que para que a humanidade conhecesse a verdadeira paz era necessário fuzilar, fuzilar e seguir fuzilando. Havia uma bela garota, de cabelos negros e com jeito de já ter lido todos os livros e de só ter gostado de O Capital. Estes três comandavam uma erudita conversação sobre tomada de poder, mas eu juro que não imaginava que eles falavam sério. Demorei a entender que luta armada não era uma metáfora para relação sexual.
   Eu só estava nesta reunião porque meu amigo Joaquim tinha me convidado. Nós dois éramos os representantes do Brasil naquela verdadeira constelação de jovens inteligências latino-americanas. Joaquim foi o culpado desde o princípio. Quando ele me convidou para conhecer a América Latina, em minha inocência, achei que o nosso único objetivo era conquistar bonecas hablantes de castelhano, nos valendo do nosso irresistível charme brasileiro. Na volta para nossa pensão, dialogando com o enigmático Joaquim é que consegui entender parte do  funesto plano, que nos deixará em péssimos lençóis: 
 _ As autoridades do Partido querem estender a revolução para toda a América Latina e o Brasil é a peça-chave. Da conquista do Brasil a uma América Latina socialista é um passo.
   _ Mas o que nós temos a ver com isso?- perguntei rispidamente.
   _ Nós estamos na guerrilha. Nos comprometemos a participar da luta pela conquista da primeira cidade brasileira.
    _ Estes “nós” abrange quais pessoas?
   _ Você, eu e todo mundo que participou daquela reunião.
   _ Mas, porém, seguramente, a participação das pessoas que compunham aquela brilhante tertúlia será de natureza intelectual, ficando os confrontos físicos reservados a indivíduos de menor estatura mental- ponderei entre desesperado e esperançoso.
   _ De forma alguma, meu caro Jorge. As sociedades opressoras sempre se fundamentaram na divisão entre o trabalho físico e intelectual. Veja o exemplo da Grécia Antiga, o berço da democracia e da filosofia ocidental, mas que era sustentada pelo trabalho escravo. Se queremos construir uma sociedade nova, justa e igualitária, precisamos que intelectuais e trabalhadores se unam no projeto de derrubada do sistema capitalista. Não é porque cursamos Universidade que vamos deixar de por a mão na massa.
   _Resumindo, nós vamos pegar em armas, matar pessoas e correr risco de morrer.
   _Sim... Prosaicamente falando, faremos isto sim. Mas você deve sempre ter em mente que estamos lutando pelo Ideal maior, O Grande Sonho do Comunismo.
   _ Mas Joaquim, e se eu não quiser?
   _Mas como você pode não querer, Jorge, se você é meu irmão espiritual e sempre estivemos juntos em tudo? disse Joaquim ao mesmo tempo que me abraçava.
   Respondi a última fala de Joaquim com um monossílabo qualquer e não sei porque aceitei o estúpido argumento dele. Tudo o que sei é que por esta altura já havíamos chegado em nossa humilde pensão. Cumprimentamos a dona do estabelecimento: Buenas noches, Buenas noches. Subimos para o nosso dormitório e na parte de cima da beliche tive um horrendo pesadelo, que devo narrar o mais fielmente possível para revelar á humanidade o terrível sofrimento psicológico que a iminência da guerra pode causar em almas sensíveis:
O sonho

   Eu era um soldado e estava envolvido em uma sangrenta batalha. Pelejava com denodo. Provocava incontáveis baixas no exército adversário. Até que me vi frente a frente com uma mulher, uma oficial das hostes inimigas. Ela era de extraordinária beleza. Pancadas fortes no meu coração. Era meu dever matá-la, mas minha alma dizia não. Ela poderia ser a mulher da minha vida, a mãe de meus rebentos e estava ali ferida, desarmada, vestida com a roupa do lado inimigo. Por fim, a obrigação cívica triunfou e matei o meu amor.
De repente, eu estava em outro cenário. Estava sendo condecorado. Recebia a justa premiação por ter me portado valentemente nos embates. Mas não podia me olvidar que havia matado meu anjo. Eis que uma mulher alta e loura me observa. O general nos apresenta e diz que devemos nos unir pelo bem da revolução. Passamos a morar, minha esposa e eu, em uma cidade que nevava o dia todo. Ninguém poderia transitar livremente pelas ruas, pois todos os que tentavam transformavam-se em blocos de gelo.Minha cônjuge e eu passávamos dias inteiros tendo que produzir artigos em defesa do regime. Tinhámos que atacar o capitalismo e nunca fazíamos amor. Eu tentei diversas vezes, porém ela dizia que era necessário trabalhar pela revolução, que não existíamos como indíviduos, mas sim como peças de um projeto coletivo e que era urgente destruir, até a raiz, o pensamento burguês. Entretanto, realmente, eu sentia falta de um pouco de diversão. Nossa
 vida conjugal se resumia em trabalho, trabalho e mais trabalho.
   Tudo prosseguia na santa monotonia, até o fatídico dia em que vieram os tanques. Os soldados falavam em inglês e destruíram nossa cidade. No lugar, construíram uma filial da terra de Disney.
De volta à “realidade”

   Acordei banhado em suor. Felizmente estava com meu pijama listrado e não com a fantasia do Pato Donald. De fato, não sei o que é pior, se a Disneylândia ou se o laborioso projeto em benefício da Revolução. O relógio marcava seis da madrugada. Joaquim me informou que era preciso levantar, arrumar e partir para o aeroporto. Iríamos para Minas Gerais, dar nossa contribuição para o projeto revolucionário. Era preciso ser guerrilheiro, modificar radicalmente as formas de produção, instaurar a ditadura do proletariado. Mas viver, dormir, aproveitar a vida, contemplar, o céu, o sol, o mar, não é preciso.
   Dialogando com Joaquim a caminho do aeroporto tive acesso a mais pormenores da nossa missão:
   _Meu caro Jorge, chegaremos a Belo Horizonte e lá tomaremos um ônibus que nos levará para a cidade que iremos conquistar, Entrada do Paraíso.
   _Entrada do Paraíso, mas de onde vem o nome desta cidade? Por acaso é ela um importante centro de peregrinação religiosa?
   _ Não, creio que a cidade é centro de algo exatamente contrário à religião... Não é o momento para pensarmos em questões de toponímia, meu nobre amigo. Mas se você insiste em saber a explicação para o nome da localidade que a Revolução determinou que conquistássemos,  posso te apresentar uma hipótese: a denominação de Entrada do Paraíso se explica pelo fato de ser lá que se iniciará o processo revolucionário no Brasil.
   _Hipótese fantasiosa, a realidade é outra.
   _Talvez seja, mas que me importa a realidade atual do mundo? O que interessa é transformar a realidade.  
   _ O marxismo se parece com uma religião, com promessas de paraísos...
   _ Pode ser, todavia o paraíso  do marxismo se conquistará com a luta do povo oprimido e não com a benevolência de um deus tirânico.
   _Mas Joaquim, chegando ao Brasil e à cidade de Entrada do Paraíso, como iremos proceder?
   _Ótimo questionamento, meu caro amigo. Chegando à Entrada...
   _ Espere, você pode falar destas coisas, assim no meio da rua?
  _ Oh, não se preocupe Jorge. Estamos em pleno território revolucionário. Olhe para esta gente, todos escrevem conjuntamente o belo poema da Revolução...
   Olhei para a gente... Um povo sofrido, acotovelando-se nas vias do centro da capital, fazendo fila para comprar alimentos nos postos estatais, lotando os veículos de transporte público a caminho de mais um estafante dia de trabalho. Haverá realmente diferença, profunda e substancial, entre um povo submetido a um regime com pretensões socialistas e um de um país francamente capitalista. Certamente os meios de produção mudam, a forma de governar, as relações sociais mudam, mas não creio que a opressão venha a ser extinta. Mas talvez Joaquim tenha razão... Provavelmente o projeto deste país, em longo prazo, venha gerar frutos realmente positivos e as desigualdades sociais sofram uma redução significativa. Mas para que este êxito seja alcançado é indispensável que os puritanos do Norte deixem esta pequena ilha em paz. Se , ao menos, ao invés dos espiões da CIA, eles nos mandassem as Marilyns and Graces...
─O nosso avião chegou, Jorge. Vamos rumo á revolução.
__Pelo meu atual estado psicológico gostaria imensamente que revolução fosse um nome de uma animada boate.
De volta a pátria
Não posso acredita que voltei  ao meu país!O Brasil é verdadeiramente uma terra estupenda. Minha vasta experiência internacional, adquirida naquela minúscula ilha caribenha e socialista, permite-me afirmar que a nação verde e amarela possui a supremacia planetária. Afinal, em que em outro lugar do mundo se pode ligar o rádio e ouvir os astros de rock americano.Ou ir ao cinema e ver as grandes produções de Holywood. Quando assisti Os Dez Mandamentos e Ben Hur me encantei com a figura de Charlton Heston de tal forma que me converti ao protestantismo e comprei um rifle. Mas estas duas experiências não me trazem boas recordações. Mas voltando ao meu delírio ufanista totalmente infundado e sem nenhuma utilidade para a progressão deste relato, não posso me esquecer de citar a mulher brasileira. Simplesmente a mais bela do globo terrestre, tão cantada em verso e em prosa pelos melhores poetas e cafajestes. As nossas fêmeas são extremamente sensuais, estão sempre propensas ao sexo, pelo menos nas palavras daquele agente de turismo alemão. Mas eu devo discordar, porque do alto da minha experiência de quem só consegue companhia feminina quando vai à bordeus... Mas deixemos de confissões embaraçosas e voltemos às efusivas demonstrações de amor pátrio. Somos

  
  




sexta-feira, 15 de abril de 2011

sábado, 9 de abril de 2011

A estrada de tijolos amarelos

Dorothy teve que seguir os tijolos amarelos para encontrar o Mágico de Oz, que a levaria de volta para sua terra natal, no Kansas. No caminho ela encontrou com o Espantalho, que queria alcançar a inteligência, o Homem de Lata, que pretendia ter sentimentos e o Leão que sonhava ser corajoso. Estes viajantes descobrem em uma jornada maravilhosa que já possuiam os bens espirituais pelos quais tanto ansiavam.
A estrada de tijolos amarelos é a vida e deve ser trilhada para que possamos crescer como pessoas. Não há magia que nos faça superar nossos limites, somente trabalho, amizade e reflexão. Como fizeram Dorothy e seus companheiros.

Antônio, marinheiro

Antônio navegava. O mar era tão bonito. Antônio sabia que um dia poderia morrer no mar, pois o mar era cheio de monstros, de sereias, de piratas, e muitos perigos mais. Mas ele sabia que o mar precisava ser navegado. Afrontar os medos, ouvir a música das águas, às vezes doce e perfeita como a de Bach, outras vezes grandiosa e terrìvel como da Quinta Sinfonia. Porque o mar não era só para ser visto de longe, dando adeus a quem partiu e rezando pelo seu retorno, o mar também era para ser navegado. Para se estar nele e se sentir infinito, porque se é parte de algo maior que você.

Gênesis

domingo, 3 de abril de 2011

Carnaval

_Nossa escola será campeã.
_É impossível.
_Não seja tão pessimista.
_Não sou pessimista.Sou realista.
_Vamos espertalhão. Me diga porque não podemos triunfar.
_O nosso desfile apresentou um série de erros. Nossa rainha de bateria era obesa...
_Desafiamos os padrões estéticos vigentes.
_Ora, ninguém se importa com este tipo de coisa no carnaval. E além disto nossas fantasias foram pobres e mal feitas. O nosso samba enredo não empolgou e o pior de tudo... Vou dizer francamente: Essa ideia de homenagear Adolf Hitler foi uma temeridade, uma estupidez sem tamanho.
_O público e os jurados são inteligentes o suficiente para entender nossa abordagem revisionista do fenômeno nazista.
_Uma coisa é retratar os nazistas como seres humanos; outra coisa é enaltecê-los como fez o nosso desfile.
_Vai me dizer que você não gosta de louras.
_Vamos parar com a brincadeira, porque o assunto é sério.Nós fomos vaiados pelo público, os jornais nos detonaram e a comunidade judaica irá entrar com um processo contra a nossa agremiação, logo após o recesso carnavalesco.
-Você só vê o lado negativo das coisas.
_Mas qual lado positivo teve o carnaval de nossa escola?
_Muitos. Vou enumerá-los: 1° os nossos passistas alemães revolucionaram a coreografia do samba. 2° o nosso desfile foi o único que não teve a presença de celebridades descartáveis. 3° apresentamos uma visão diferenciada e esclarecedora de um importante fato histórico.Vou parar por aqui, para não ser exaustivo.
_Mas, você não compreende o escândalo que representa negar o holocausto.
_Ora, nós apenas dissemos que a máquina ideológica xará daquela marca de cigarros exagerou as dimensões, do que foram ,na realidade medidas de segurança adotados por um governo democrático.
_Loucura.
_Nosso patrocinador adorou.
_Aquela organização neonazista, proprietária daquela agência de modelos...
_Eles acreditaram no nosso trabalho e foram muito úteis.
_ Então o nosso próximo enredo, se é que nós vamos existir até o ano que vem, será  sobre o AI-5, ou sobre Duque de Caxias, ou quem sabe sobre o Curinga...
_Não, o nosso próximo tema será Lúcifer.
_Lúcifer?!
_Exato. Iremos retratá-lo como um grande injustiçado. O ser que aspirava ao progresso, a sua evolução individual, mas que foi derrotado pelas potências celestiais  e em seguida tratado de forma tremendamente injusta pelo imaginário humano.
_Tal e qual Hitler.
_Hum... Não havia pensado nisso, mas agora vejo que os dois personagens têm muito em comum...

O cinema como nosso espelho mágico

Surgido em Paris, o Cinema por esse mais de um século muito frutificou. Primeiro veio George Meliés e seus pioneirismo na abordagem artística daquela novidade científica. Em seguida aparece Holywood, Charles Chaplin, a Comédia Americana da década de 20, o expressionismo alemão, o cinema soviético. Continuando, assistimos ao nascimento do cinema falado, Cidadão Kane, Os Dez Mandamentos, Rastros de Ódio, Goddard & Truffaut , Glauber Rocha, Stanley Kubrick, Woody Allen, Spielberg & Lucas, o cinema iraniano, o argentino, o atual cinema brasileiro,etc.

Impossível citar todos os nomes e datas importantes para a Sétima Arte, para isto conhecimento e espaço me faltam.O cinema aparecido como novidade científica e comercial, depois transubstanciado em expressão artística, possui uma dicotomia: cinema arte e cinema comercial. Obviamente muito preconceito e muita confusão ocorrem nestas classificações. Existe uma tendência de criticar asperamente o cinema dos EUA, quando muito dos grandes clássicos cinematográficos vêm de lá.Outro engano é julgar as películas pelo seu sucesso comercial ou pela sua contemporaneidade ou por sua antigüidade( dizer que somente os filmes “novos” são bons ou que apenas os “velhos” são de qualidade).

No meio de todas estas opiniões, conceitos e preconceitos , que posição podemos tomar?
• A do cinema tendo a humanidade como seu maior ingrediente e tema .
• A do cinema que toca o coração das pessoas e as leva á reflexão, não sendo um mero passatempo.
• A do cinema como celebração da criatividade, da inteligência e generosidade humanas.
• A do cinema como conjugação e síntese de todas artes criadas pelo engenho humano.
• A do cinema como veículo de disseminação cultural, confraternização e diminuição de barreiras entre os povos, em suma, do cinema como fator humanizante.
• A do cinema de Chaplin, Jonh Ford, Orson Welles, Glauber Rocha, Bergman, Allen, Kubrick, Copola(pai e filha),Scorcese e tantos outros dentre os que conheço e que desconheço, mas que como os citados levaram o cinema ao mais elevado grau de beleza e profundidade.

A epidemia alada

_Quê?!
_Nossa geladeira voou.
_Não é possível.
_Eu vi com meus próprios olhos.
_Não brinque comigo. Estou trabalhando.

_Você vendeu a nossa geladeira, sua maldita.
_Não, seu bruto.È como eu te disse: de repente o eletrodoméstico se soltou da tomada, passou a levitar, fez um movimento de pássaro, atravessou a janela e conquistou os céus azuis... Eu nem tentei impedi-la, porque estava petrificada.

_Você nem vai acreditar, mas minha geladeira sumiu misteriosamente...
_Geladeira, ah! Pior fui eu que perdi minha televisão de plasma, novinha.
_Mas como perdeu, não me diga que...
_Minha mulher disse que assim, sem mais menos, sem abanar o rabo, sem dar um tchau, ela simplesmente alçou voo, como se fosse um pardal qualquer.
_Mas, como isso pode se dar?
_È uma epidemia extraordinária. Está sendo noticiada na internet, nas rádios, televisões, jornais e revistas. Convocaram físicos, parapsicólogos,padres, pastores, esotéricos para discutir o assunto, porém obviamente ninguém apresenta uma explicação convicente. Acho que é o fim do mundo.È isso que dar se afastar de Deus. Estamos perdendo os bens que trabalhamos duro para conseguir. Veja o nosso gerente: o carro dele voou e ele teve que andar de ônibus pela primeira vez na vida.Ele teve uma reação alérgica e foi parar no hospital.

_O quê?! Agora foi nosso computador?
_Ele também virou pássaro.
_Não me venha com linguagem poética, quando eu estou tendo um prejuízo brutal.
_A televisão entrevistou um místico sobre esta terrível "epidemia alada", e ele afirmou que estes insólitos acontecimentos talvez sejam um aviso dos poderes superiores para a nossa civilização. Ou seja, é um convite para que repensemos o valor que damos aos bens materiais, e passemos a valorizar a convivência com o nosso semelhante, o contato com a natureza, a ligação com os deuses, e outras coisas mais que eu me esqueci. Em seguida, ele divulgou o novo livro dele.
_Isto deve ser trabalho de uma quadrilha muito bem equipada.

_PESSOAS DE TODO PAÍS PERDEM BENS ELETRODOMÉSTICOS E VEÍCULOS.
_GOVERNO RECOMENDA CALMA À POPULAÇÃO.
_NOSSA CIRCULAÇÃO ESTÁ COMPROMETIDA POR FALTA DE APARELHOS.

_O país está paralisado, nada funciona.
_Nossos corações e nossas mentes estão intactas.
_Perdi o desfecho daquele seriado.
_Mas você não percebe que agora podemos ser livres, como o bom selvagem, vivendo em comunhão com a mãe natureza.
_Como ,se eu não posso assistir mais ao canal de documentários.
_Abra seus olhos e veja como o astro rei permanece brilhando.
_Você fica com o sol. Eu vou à luta.

_ Camaradas, nosso governo e nossas autoridades revelaram-se pulsinânimes para solucionar o terrível caos que vive nossa sociedade .
Basta de promessas vazias. È urgente que os homens de bem e de força de vontade tomem atitudes enérgicas. De minha parte, empunho a bandeira da tomada do poder pelo nosso grupo e que conjuntamente trabalhemos pela revogação da lei da gravidade, esta ladra dos nossos bens, conquistados com o suor de nossa labuta.
Aplausos entusiasmados.

_Nosso grupo se reúne aqui para esperar com ânsia a vinda de nosso precioso Messias, que nos ensinará uma existência diferente, em contato com os deuses e libertos do mundo material.
_Oh,vinde logo, Senhor George Harrisson.

_Eu sei, como ir a Marte.Construí um dirigível. Vendo passagem a preços promocionais. Lá todo mundo pode colecionar eletrodomésticos e ter quantos carros quiserem.
_Quanto é a passagem?
_Quinhentos reais.
_Você aceita cartão?

_O luar, as estrelas, os pássaros, a chuva,flores beijadas, beijos que são flores, correntes de amor e paz me levando para longe e para perto daqui. Sinto o universo inteiro se expandindo e eu fazendo parte dele. Sou pequena,sou infinita, sou livre, sou solidão, sou irmandade, sou luz, sou sombra. Navego em nuvens sublimes, a mim pertence o Azul e o reparto com a Vida.

Um magnífico automóvel

João sempre quis ter aquele carro. Uma esplêndida máquina, a melhor já criada pela indústria humana. Nascido em família de classe média jamais possuiu um veículo luxuoso. Entretanto, a vez dele havia chegado. Com atual conjuntura econômica e um ótimo emprego em uma multinacional, finalmente, ele conseguiu reunir dinheiro suficiente para satisfazer o seu sonho de consumo.
João sempre foi um rapaz honesto, cordato, esforçado e inteligente. Sua única obsessão era adquirir aquele carro extraordinário. Naquela gloriosa manhã de sábado, tomou um café da manhã reforçado, despediu-se da mulher e dirigiu-se para a concessionária a fim de entrar para o seleto grupo dos proprietários do fenômeno de quatro rodas. Porém, chegando na loja teve uma ingrata surpresa: O preço do automóvel tão sonhado havia subido. Depois de muito argumentar com o vendedor, João exigiu a presença do gerente:
__Quero falar com o gerente?
__Tem certeza disto senhor? _ perguntou o vendedor de forma apreensiva.
__Absoluta. Este aumento é abusivo. Ontem a noite, eu acessei o site desta concessionária e lá o preço era bem inferior do que este que você está cobrando hoje. Pelo preço de ontem posso pagar este carro e quero comprá-lo.
__Como queira senhor. Tenha a gentileza de me acompanhar.
João foi conduzido por um corredor e levado até a sala da gerência. O vendedor pediu um tempo para avisar ao gerente da presença do cliente. Instantes depois, João estava dentro do escritório do gerente da concessionária. O ambiente era ricamente mobiliado, mas possuía um cheiro desagradável, que João percebeu, embora não pudesse definir qual odor era.
O gerente, muito solícito, ofereceu uma cadeira para o cliente e, como já estava inteirado da reclamação, explanou o motivo da majoração do preço do automóvel para João.
__Este carro com que trabalhamos é um dos maiores símbolos de status do mundo. E desde ontem está mais prestigiado, porque venceu uma eleição de repercussão mundial, que tinha por objetivo  escolher o melhor automóvel do planeta. Achamos justo subir o preço, uma vez que o prestígio que o carro porporciona aos seus proprietários também aumentou. Receio que o nosso site esteja desatualizado, pois nossos funcionários responsáveis pela divulgação eletrônica só voltarão aos trabalhos na segunda-feira. Em suma, sem querer ser indelicado, o preço que o nosso competente vendedor informou ao senhor é o preço deste palácio sobre quatro rodas e não aceitaremos nenhum centavo a menos.
__Mas... Não podem fazer um desconto... Pago o valor de antes do prêmio.
__Hoje em dia este valor é insuficiente.
__Pois então pago o valor antigo e financio o restante.
__Não financiamos este produto.
__Vocês são inflexíveis.
__Ora, não se zangue meu caro...?
__João Faustino.
__Caríssimo João, vendemos um produto extremamente qualificado e incrivelmente caro. Você não tem o dinheiro suficiente para comprá-lo e isto não é nenhuma vergonha. A maior parte da humanidade não pode efetuar esta compra. Mas, se este é o seu sonho, não vejo porque você não fazer certos sacrifícios para realizá-lo.
__Sacrifícios?!
__Sim, veja o que pode vender, o que pode perder, do que pode abdicar, para comprar este maravilhoso automóvel. Olha para o fundo de sua alma e veja o que este carro significa para você e depois nos procure, obviamente, se já estiver com o valor estipulado.
Ao dizer isto o gerente abriu um cativante sorriso e ofereceu para João uma bebida. Este um pouco zonzo aceitou a oferta, embora não fosse usuário de bebida alcoólica. O gestor ofereceu a João um cartão,com o nome Angelo Lúcio, que o rapaz guardou na carteira. Em seguida, os dois homens se despediram, após calorosos cumprimentos por parte do comerciante.
João ficou tonto pela bebida, por seu desejo de adquirir aquele carro e pelas palavras do gerente. Algo estranho germinava dentro dele.
Na segunda-feira, João fez que ninguém, nem ele mesmo, imaginava que ele fosse capaz de fazer: Desviou dinheiro da firma, justamente a quantia necessário para completar o pagamento pelo carro tão sonhado. Em seguida, pela primeira vez em três anos de trabalho naquela empresa, pediu para sair mais cedo, alegando forte enxaqueca. Em vez de procurar um consultório médico, foi diretamente à concessonária comprar o esplêndido veículo. Preencheu o cheque e deu entrada no processo para liberação do carro. Teria que aguardar mais vinte dias para realizar o sonho. Mas é óbvio que realizou um teste de direção, que o fez sentir o gosto do paraíso. Chegando ao lar, se indispôs com a esposa, sempre com os mesmos assuntos cotidianos que nada tinham que ver com douradados sonhos automobilísticos.
No dia seguinte a fraude foi descoberta. Como João não tinha experiência em ser desonesto, realizou um crime extremamente imperfeito. Foi demitido e indiciado em processo judicial. Mas para ele nada mais importava, a não ser a espera pelo carro.
O casamento de João ia de mal a pior. Sua esposa tomou ciência do desfalque efetuado por ele . Em busca de explicações, a mulher só encontrou respostas grosseiras e ameaças de agressão. Um dia, quando o nervosismo dos dois estava no auge, João acertou um soco certeiro na mulher, quebrando o nariz dela. Ela ficou em estado de choque, porque nunca imaginou que seu marido fosse capaz de tal ato de violência. Logo em seguida, o celular de João tocou: Era da concessionária, finalmente o tão ambicionado veículo havia sido liberado.
João correu até à loja de veículos. Surpreendemente quem o atendeu foi o gerente da concessionária. Sempre sorridente e simpático, parabenizou João pela aquisição, que faria com que ele passasse a fazer parte de um seletíssimo grupo. Ofereceu a João uma bebida e pediu ao comprador uma "carona".
Os dois homens circulavam na cidade com aquele nababesco automóvel. João, meio entorpecido pela bebida, pela presença e pelo cheiro daquele charmoso gerente, disse:
__Ainda bem que pude pagar pelo meu sonho.
__Mas você ainda não pagou. Não o preço total.
__Como assim não paguei? Já assinei todos os documentos. Vai dizer que você vai querer arrancar mais dinheiro de mim?
__Não falo em pagamento em dinheiro. Falo em pagamento com algo mais precioso do que dinheiro, embora vocês humanos, em sua estupidez, não percebam e troquem suas almas imortais com tanta facilidade por bens materiais efêmeros e de valor discutível.
__Do que você está falando?
__Verá quando colidir.
__Colidir?!
João voltou a prestar atenção no trânsito, mas já era tarde. O seu carro colidiu com um ônibus urbano, superlotado, e o acidente provocou a morte não somente dele, mas de dezenas de pessoas.
Os homens do corpo de bombeiros, encontraram dentro daquele caríssimo automóvel, apenas um cádaver. Neste exato momento, a alma deste cádaver dava entrada no Inferno e era levada até o gabinete de Satanás. Mas que coisa curiosa! O administrador das terras infernais era idêntico ao gerente da concessionária e o cheiro que aquele lugar exalava era o mesmo da sala da gerência da loja de autos.
Satanás recebeu o novato com um largo sorriso e com voz terrível disse:
__Agora você completou o pagamento, meu caro João.

Davi e Golias

Filisteus guerreavam com os hebreus, o povo escolhido por Deus. Em um intervalo da contenda, o terrível gigante Golias se levanta e desafia os soldados hebreus, dizendo que duelaria com qualquer guerreiro adversário e que quem saísse vitorioso traria a vitória ao seu povo.

Nenhum hebreu se atreveu a aceitar o tremendo desafio. Houve um silêncio constrangedor e quando tudo parecia encerrado, com Golias sentindo-se vencedor, um jovenzinho chamado Davi,  se ergue nas fileiras hebréias, assegurando que enfrentaria o colossal inimigo. Tal decisão provocou espetacular consternação no exército judaico, pois todos temiam  pela vida do frágil rapaz.

Muitos tentaram demovê-lo da temerária decisão, porém o rapaz se manteve irredutível,afirmando que confiava no Senhor dos Exércitos e que gostaria de ter pelo menos uma hora de solidão para poder invocar a proteção divina, condição aceita pelo formidável Golias.

Em paz, em silêncio, o rapaz orava, buscando orientação e auxílio do Ser Superior. Entretanto, Deus aparentemente não parecia interessado em guerras sanguinárias dos humanos, uma vez que não se manifestava para o jovem duelista. O moço resolveu deixar a interação com o Sagrado para mais tarde, pois o seu prazo já deveria estar findando e era imperativo tentar matar o inimigo.

Davi achou que era necessário utilizar uma arma na peleja, mas como não possuía nenhuma, decidiu levar uma atiradora de pedras. Porém quando estava se encaminhando para o centro da batalha, ocorreu o encontro que mudou a sua vida e a história da humanidade...

Davi encontrou o Patrocinador. E o Patrocinador disse que vinha a mando de uma nação que tinha muito apreço pelos hebreus e que estava ali para ajudar o povo judeu a vencer aquela batalha. E o Patrocinador disse mais: que aquela pequena atiradora de pedras não era uma boa arma, que Davi deveria usar o que há de mais avançado e devastador em tecnologia bélica, e que não era preciso ter nenhuma preocupação, porque ele, o Patrocinador, provindeciaria tudo, ou melhor, destruiria tudo.

E assim se fez o primeiro dia da terrível carnificina. O Patrocinador mandou vir tanques de guerra, aviões com mísseis explosivos, bombas h,j,k,l e metralhadoras que chovem balas mortais ,que ao lado das tropas do povo de Davi, dizimaram todos  os soldados filisteus, armados apenas  com primitivos e frágeis arcos atiradores de flechas.

Mas o exército trazido pelo Patrocinador, não se contentou com vitória militar e resolveu atacar a população civil da Filistéia. O que significa bombas, tiros, morte e medo desabando sobre crianças, mulheres e velhos que mal tinham o que comer.
(História inspirada em um  texto do blog de José Saramago.)

A princesa da beleza

O DISCRETO CHARME DE LUÍSA

Luísa era famosa em todo o país como princesa das cirurgias estéticas. Realizou todas as possíveis e imagináveis, além das impossíveis e inimagináveis. Capa de várias revistas, presença constante em filmes publicitários e em festas badaladas, próxima estrela de uma telenovela que está sendo produzida. Assim é a heroína desta história.

Embora seja uma mulher belíssima, é tremenda injustiça rotulá-la como neurótica com a aparência. Ela apenas se cuidava, usando os melhores cremes, as melhores lentes de contato e as melhores tinturas para cabelo.

Outra injustiça que o vulgo freqüentemente comete contra a celestial Luísa é tachá-la de ser uma pessoa vazia, desligada de questões culturais. Pelo contrário, sua  ligação com o universo literário é inegável, sendo que ela é uma autora muito bem-sucedida! Seu livro, “Manual prático para você se tornar uma celebridade linda e famosa”, provocou uma incrível corrida às livrarias de leitores (e pessoas que só olham as figuras ou que apenas queriam decorar a estante) de ambos os sexos.Fenônemo de vendas semelhante no mercado editorial semelhante somente quando o Papa resolveu publicar as suas “Memórias Sexuais”. Digna de nota também é aquela ocasião ,em que numa importante feira literária, Luísa foi mais assediada que aquele ilustre autor lusitano, premiado na Suécia.

Tarefa importante é deixar bem claro a você leitor, a sensibilidade social de nossa musa. Não, ela não é indiferente às questões sociais como afirmam seus invejosos críticos. A prova disso é sua participação ativa em campanhas humanitárias, desde que tenha a sua imagem divulgada em revistas e emissoras de televisão, usando sumária vestimenta. Tudo é claro por nobres razões.

Mas nossa deusa possui ambições para além de ser de todas a mais bela. Ela ambiciona ser candidata à presidência da república. Se eleita ,pretende implantar importantes projetos sociais como botox para pessoas de baixa renda e reforma educacional, com a implantação do ensino da profissão modelo-manequim-atriz-apresentadora nas escolas públicas.
A RIVAL

Nenhuma outra mulher do mundo podia rivalizar com a retratada nestas mal traçadas linhas no quesito beleza. Pelo menos nenhuma célebre, já que em um certo dia estando Luísa passeando pelas ruas encontrou uma belíssima mulher, uma deusa de cabelos negros e olhos azuis parada na entrada de um banco. Nossa amiga ficou em choque e paralisada por alguns segundos, mas por fim sacou a máquina digital e tirou uma foto da linda moça. Nisto a bela e desconhecida jovem se colocou em estado de alerta e em seguida assobiou forte, sinal que fez aparecer dois homens altos e fortes, que agarraram Luísa e a jogaram dentro do carro, tão rapidamente que ninguém na avenida se deu conta da movimentação.

Agora infelizmente,teremos que, você e eu, querido leitor, descer ao lado triste e sem brilho da existência humana. Não é que nossa esplêndida Luísa está amarrada em uma cadeira, com a boca amordaçada, em um porão escuro! Ela fica assim isolada, até que por uma porta entra aquela mulher de beleza deslumbrante que conhecemos em frente ao banco, acompanhada dos dois homens robustos. A raptora retira a mordaça de Luísa e inicia um interrogatório:

_ Você trabalha para a polícia?
_ Não.
_ Então, para quem trabalha?
_ Ora...Trabalho para revistas, para televisão.
_ È jornalista?
_ Não.
_ Então, o que faz?
_ Faço muitas coisas.
_ O quê por exemplo?
_ Poso para fotos. E estou me preparando para participar de uma novela.
_ Novela?!
_Sim. Escrita por Fernando Menezes, Vai ser um estouro de audiência.
_ Então... Você não me conhece ??
_ Não, nunca a tinha visto antes. Embora tenha que admitir que você é a mulher mais bonita que estes meus olhos já viram, exceto quando eu me olho no espelho, obviamente.
_ Obrigada- disse a interrogadora, não sem esboçar um sorriso.
_ Qual é o seu segredo de beleza- pergunta Luísa.
_ Segredo de ... Olha, eu tenho que conversar com meus... amigos... Depois eu volto para conversar com você, tá bem ?
_ Sim, querida. Eu sou muito compreensiva. Mas será que antes você não poderia me desamarrar? Acho que estas cordas apertadas vão prejudicar a minha pele.
_ Logo mais, querida. Espere um minutinho, tá. E quanto às cordas, não se preocupe, pois elas são ótimas para a pele. Aliás, este é o meu segredo de beleza.
_ Ora, vivendo e aprendendo.

Nisto a moça que fazia as perguntas e os dois homens foram para outro cômodo e iniciaram uma discussão:

_ Ela não sabe de nada- disse a mulher.
_ Ela deve estar mentindo- disse um dos homens.
_ Com certeza ela deve ser da polícia ou da imprensa- disse o outro.
_ Não, tenho certeza que não.- responde a moça- Ela é uma perua louca, conheço o tipo.Poderíamos exigir por ela um bom resgate, mas não vamos fazer isto porque não é este o nosso ramo. Eu já sei o que vamos fazer, tenho um plano.

Depois deste elevado debate e da posterior exposição do plano de ação, o dinâmico  trio retornou ao triste cubículo onde a angelical Luísa permanecia imobilizada. Novamente foi a mulher, evidente líder daquele grupo, quem dirigiu a palavra à inocente prisioneira:

_ Olha, querida, qual é o seu nome.
_ Luísa. E o seu?
_Fernanda. Bem, Luísa temos que te explicar umas coisinhas. Nós confundimos você com outra pessoa. Pretendíamos pregar uma peça em uma amiga, que é parecidíssima com você. Agora, conversando com você me dei conta de que nós nos enganamos. Sendo assim, vamos soltar você com uma condição...Digo com um pedido:- não conte para ninguém o que aconteceu aqui. Porque nós ainda pretendemos surpreender nossa amiga e se esta história for divulgada pode chegar ao conhecimento dela. Combinado, então?
_Sim, claro. Eu detesto estragar surpresas.
_ Agora, meu bem, nós vamos vendar seus olhos. Porque esta região é muita empoeirada e nós não queremos prejudicar seus olhos.
_ Sim.

Rapidamente um dos rapazes vendou os olhos de Luísa, olhos estes embelezados por estupendas lentes de contato verdes. Em seguida Luísa é levada até a um carro, ainda amarrada e vendada. Os três comparsas também entram no veículo, sendo que um dos homens dirige e o outro fica no banco de trás com Fernanda, sendo que Luísa fica no centro. O motorista dá várias voltas com o veículo e leva a nossa heroína a uma parte pobre e afastada da cidade. Chegando em frente a um lixão o automóvel é estacionado e Luísa é informada que irá ser deixada ali.

_ Pois bem querida, vamos te deixar aqui- disse Fernanda.
_ Mas como, se não sei onde estou e tenho os olhos vendados e as mãos e as pernas amarradas.
_ Lucas vai te livrar das cordas e da venda.
_ Mas e a minha bolsa? Lá estão meus cartões de crédito, meu celular e muitas outras coisas importantes.
_ Olha, querida: -esquecemos sua bolsa, mas te prometemos devolver brevemente. Agora, Lucas leve-a.

Lucas pegou Luísa como se ela fosse uma boneca de pano e a retirou do carro, desamarrou a moça e a deixou sentada em uma pedra.  Velozmente o bandido entrou dentro do veículo, que já estava com o motor ligado e desta forma o trio desapareceu.

Assim ficou Luísa abandonada e desolada, sem saber onde estava. Decidiu ir andando em linha reta para encontrar alguém que lhe desse informação. Chegando na parte da rua em que havia casas, ficou estarrecida com a pobreza daquela gente. Alguns homens assobiaram e disseram palavras elogiosas quando a viram, o que a deixou muito contente. Por fim, ele encontrou uma senhora a quem achou oportuno perguntar:

_Onde posso encontrar um táxi?
_ Eu tenho um telefone de táxi anotado. Vou lá dentro buscar.
_ Ei, espere. Esqueci minhas coisas na casa de uma amiga... Será que a senhora não poderia me emprestar também o telefone.

A senhora olhou de alto a baixo aquela moça bem vestida, parecendo ser rica. Mas por fim concordou.
_ Vamos, entre.

Luísa telefonou e minutos depois o táxi veio buscá-la. Ela agradeceu a ajuda da senhora, e em seus pensamentos considerou que deveria presenteá-la com um exemplar de seu livro.

O taxista achou Luísa muito linda e ficou com a impressão de que já a conhecia de algum lugar. Quando chegaram ao destino e Luísa disse que iria lá dentro buscar o dinheiro, o chofer teve uma súbita inspiração. Pegando uma revista de nudez feminina, comparou o rosto da modelo da capa com o de sua passageira e disse:

_ Já sei quem você é, não precisa me pagar nada.
_ Tem certeza?- pergunta Luísa.
_ Sim, claro. Vou contar a todos os meus amigos que eu já te levei no meu possante. Vai ser um sucesso. Agora toda vez que você precisar de um taxista me liga, tà?

Luísa agradeceu ao motorista e se dirigiu para a sua casa. Sentiu um grande alívio por estar novamente em seu lar, seu território, rodeado pelo seu luxo. Esta boa sensação foi rapidamente substituída por uma grande inveja da beleza daquela moça, com quem ela tinha estado hoje. Para vencer o desânimo ela resolveu caminhar até o centro comercial da cidade e fazer umas comprinhas.
A  TRANSFORMAÇÃO

Ela foi andando mesmo, já que detestava dirigir e morava perto das lojas mais chiques da cidade. Enquanto caminhava viu no chão uma página de jornal que trazia a foto de uma jovem. Pegou a página e ficou maravilhada. Era uma foto de Fernanda... Ela estava linda... E que ótimo a imagem ser colorida... Assim poderia com a ajuda dos profissionais certos fazer umas modificações que a deixariam tão linda quanto Fernanda. E com incrível agilidade Luísa sacou o seu celular de reserva e marcou horário com o seu cirurgião favorito.

O cirurgião referido acima é simplesmente o nome mais respeitado da medicina estética contemporânea. Chama-se Heitor Dias e era procurado por nove entre cada dez celebridades. O que lhe deu fama foi o incrível caso de homem que pensava ser uma galinha. Tendo sido tratado por vários psicólogos,  psicanalistas e assemelhados, com ou sem registro profissional, o paciente não demonstrou nenhuma melhora. Em função disto, sua família desesperada resolveu após uma dramática deliberação, de que já que o rapaz se sentia uma galinha o melhor para ele é ser uma galinha de fato.Para o mais pragmático dos irmãos a maior vantagem é que desta forma ele botaria ovos. Depois de procurarem os mais respeitados cirurgiões e de ouvirem sonoros não de todos eles, finalmente um iniciante cirurgião, o mesmo que anos depois aperfeiçoaria a beleza de Luísa, resolveu efetuar a transformação do infeliz rapaz, não sem a preciosa ajuda de um carnavalesco que foi responsável pela colocação das penas.

Este incrível trabalho foi fartamente noticiado pela imprensa, dando ao jovem médico uma fama instantânea e altamente rentável, passando a ser procurado por uma quantidade enorme de pessoas famosas ou não famosas,mas todas com muito dinheiro e ávidas por transformações estéticas. O doutor Heitor era um ser acima dos mortais, capaz de transcriar a natureza, fazendo os feios se tornarem belos e os belos virarem deuses. Para tanto, bastava que o cliente fosse privilegiado economicamente. Apesar de ser muito ocupado, o doutor da beleza, como era chamada pela imprensa especializada, sempre encontrava um tempo para atender Luísa, por quem nutria uma paixão avassaladora.

_ Que bons ventos a trazem, minha cara Luísa- disse Heitor, ostentando o seu mais amigável sorriso.
_ Vento nenhum doutor. Vim por causa de uma foto.
_ Uma foto?
_ Sim, esta foto_ responde Luísa ao mesmo tempo em que depõe a página de jornal encontrada na rua na mesa do médico- Eu quero ficar idêntica a ela.
_Sim, creio que ela é muito bonita, mais acredito que tua estética é superior a dela.
_ Obrigada, doutor. Mas é uma questão de necessidade, eu preciso ter este rosto, estes cabelos, estes olhos,” este algo mais” que ela tem. O senhor consegue?
_ Sim, certamente pois se eu sou o cirurgião que transformou um homem em uma galinha, um elefante em um mamute e um anão em um astro da NBA. Mas minha cara Luísa, neste pedaço de jornal há uma informação que você parece desconsiderar... Você leu o texto...
_ O texto...Ora, me dê isto- toma a página das mãos do médico- Oh, mas que horror... Ela me enganou... Disse pra mim que se chamava Fernanda e seu nome verdadeiro é Paula... Ora, pouco me importa nem o texto, nem os nomes. Veja você doutor: ao ver uma rosa o que nos encanta é a beleza dela e não o nome, a palavra rosa. E assim é com todo o resto. Então, para concluir o senhor vai me operar mesmo, ou terei que procurar outro profissional.
_ Eu farei conforme tua divina vontade, oh sublime encarnação do amor.

Ao ser liberada pela equipe médica, Luísa pôde constatar que a cirurgia foi um sucesso e que seu rosto agora era a cópia perfeita do rosto de Fernanda, ou Paula, seja lá o nome que ela tenha. Mais ainda faltavam duas coisas para transformação ser completa: os olhos e os cabelos.

Mas que depressa Luísa foi a sua ótica favorita e encontrou lentes de contato que imitavam perfeitamente aqueles que brilhavam naquela foto de jornal. Com a mesma rapidez se dirigiu ao seu cabeleireiro favorito e tingiu seus cabelos, deixando-os esplendorosamente negros.

Luísa saiu do salão, sentindo-se linda, divina. Enquanto se olhava num pequeno espelho, um carro de polícia estacionou em frente a ela. Dois homens robustos e fardados saltaram de dentro do automóvel e levaram Luísa presa. Ela ficou chocada e quando deu por si estava em uma salinha sentada numa cadeira desconfortável. De repente, uma porta se abre e dá passagem para uma mulher acompanhada pelos dois policiais que prenderam Luísa. A mulher recém chegada toma a palavra:

_ Nós somos da polícia e sabemos que a senhora e seus comparsas cometeram muitos assaltos a banco nesta cidade e em outras capitais do país, por isso queremos que você nos informe o paradeiro dos seus cúmplices.

Luísa não soube responder a estas e outras indagações dos policiais, porém permaneceu presa, porque sua maravilhosa aparência a condenava. Seu rosto não era mais o de Luísa, “socialite” e perua mor do país, mas o de Paula Mendes, a maior assaltante de bancos do Brasil.

Os espelhos

Mês passado comprei um espelho. Fazia tempo que precisavamos de um objeto deste tipo, porque o último que tínhamos foi destruído pelos nossos netos em uma daquelas visitas ruidosas de final de semana. Minha esposa gostou do que adquiri, especialmente por uma especial característica: a imagem que o espelho apresentava era da pessoa rejuvenescida. Eu também havia notado esta anormalidade na loja, porém como sempre fui cético, optei por atribuir a visão do meu rosto mais jovem a uma alucinação momentânea .

Com mais pormenores o que ocorreu foi o seguinte: trouxe o dito cujo embrulhado e ao chegar em casa disse a minha esposa que agora ela já possuía um espelho novo, para que pudesse se contemplar. Ela considerou minha brincadeira de mau gosto, pois há muito tempo deixamos de ser jovens e de corresponder aos padrões de beleza socialmente aceitos. Porém para surpresa minha e dela o milagre ocorreu: aquela que jurei amar eternamente, na saúde e na doença, desembrulhou o nosso espelho e incrivelmente se viu com o esplendor dos 20 anos.A esta altura estava eu na cozinha saboreando o divino néctar que nós mortais chamamos de cafezinho, mas fui bruscamente interrompido de tão sublime momento por gritos histéricos provenientes da boca de minha mulher, tendo que me deslocar para saber o motivo de tamanho alvoroço. E foi assim que pude ver minha eterna namorada tão linda e jovem quanto a primeira vez que a tinha visto, bastando para isto observar o reflexo de minha esposa, estando ela posicionada em frente àquela mágica tela. Para coroar o extraordinário acontecimento também vi minha imagem de jovem como que magicamente ressuscitada.

Parecia uma espécie de bruxaria. Eu fiquei assustado e quis sair de frente do espelho, porém ela não quis, achando maravilhoso se ver mais jovem e bela. Pensei em chamar os médicos, curandeiros, a polícia, os padres, a imprensa e os curiosos, mas ela me respondeu com um sonoro e autoritário não. Julgou que deveríamos ficar com o espelho, mantendo sigilo absoluto, de forma que ninguém tomasse de nós o que ela passou a chamar de divina dádiva. Segundo minha esposa o estranho espelho era uma compensação de Deus para nossa vida sofrida, de muitas doenças e pouca aposentadoria, filhos ingratos, jovens que não respeitam os idosos e sobretudo uma forma de amenizar aquele sentimento de estar a cada dia que passa ficando mais feio e próximo da eterna noite  que chamamos de  morte. De minha parte pensei com meus botões que já que havíamos sido presenteados pelas potências do além, a loja deveria devolver o dinheiro com que paguei o espelho, mas creio que este tipo de argumento não é bem aceito no mundo do comércio.

Tentei fugir do encantamento do espelho, encantamento este que seduziu e viciou a minha mulher desde o primeiro instante. Agora ela que sempre cuidou muito bem de mim, só encontrava tempo para se ver mais jovem e mais bela. Inicialmente procurei seguir normalmente minha vida. Acordando às 6 da manhã, tomando meu desjejum e indo jogar dama com meus amigos na praça, seguia minha rotina habitual, com a diferença que agora era eu mesmo quem preparava o café, já que minha esposa permanecia hipnotizada por aquele objeto quase que 24 horas por dia.

Porém algo em mim havia mudado radicalmente, profundamente. O que sempre me pareceu saboroso, agora era insípido. Passei a achar enfadonhos meus amigos, tão velhos e sempre falando de velhice. Passei a pensar na minha juventude, época em que certamente eu não gozava da felicidade completa, mas tinha sonhos, esperanças, projetos, acreditava que poderia ter uma vida mais interessante, longe desta monotonia. Falei desta apreensão a minha companheira e ela me respondeu dizendo que o espelho nos concedia uma segunda juventude e que ao nos vermos refletidos no espelho mais jovens podíamos nos esquecer da finitude da existência , da frustração pelo progresso do envelhecimento e pela deterioração física que o acompanha, fazendo com que os velhos sejam desprezados por não participarem ativamente das atividades produtivas e estarem distanciados dos padrões de beleza em voga na sociedade.

Tentei rebater tal discurso, dizendo que não deveríamos dar importância para o que diz a “sociedade”, este ser abstrato que parece servir apenas para criar sentimentos derrotistas nas pessoas, contudo não obtive êxito. Mas resolvi comprar um outro espelho, um espelho normal para demonstrar a minha mulher que não precisávamos daquela coisa diabólica.

Procurei o mais simples dos espelhos simples. Certifiquei-me de ver nele minha imagem refletida com fidelidade. Chegando a nossa casa, instalei o novo “morador” em nosso quarto de casal e chamei minha esposa, mas ela me respondeu que iria daí a uns instantes, pois se miraria no espelho mágico um pouquinho mais.

Enquanto isso, olhei-me mais uma vez no espelho e fiquei feliz por ver minha imagem real refletida. Felicitei-me por ter tido a idéia da compra. Em conseqüência algo incrível ocorreu. O meu reflexo me respondeu dizendo que a minha idéia era brilhante e genial, como é usual em pessoas geniais e brilhantes como eu. Fiquei estupefato.Em seguida minha mulher ingressou no quarto e demonstrando preocupação, quis saber o motivo da minha aparência assombrada. Mostrei a ela o novo espelho e ela respondeu com desdém afirmando que era um espelho banal, sem ter nenhum pingo da magia do outro que nos tornava belos. Ato contínuo a imagem dela respondeu que suas palavras eram sensatas e extraordinariamente inteligentes, como era de esperar duma Deusa da Sabedoria e da Sensatez de tamanha magnitude. Fiquei mais estarrecido ainda, mas minha mulher me chamou para outro cômodo e me disse que assim como o espelho anterior nos proporcionava um reflexo jovem, este recém chegado reconhecia e homenageava os nossos dotes intelectuais e morais, sendo complementares, os dois, dando a devida valorização tanto a nossa aparência, quanto a nossa essência.

Com o passar do tempo me acostumei aos espelhos e a forma benévola com que nos refletiam. Afastei-me do convívio social, vendi os livros, o aparelho de som, a televisão e queimei as fotografias de família. Minha esposa e eu rompemos com o mundo e o desprezo dele às pessoas idosas. Agora vivendo na órbita dos nossos espelhos, nos sentimos belos, inteligentes, capazes, correspondemos ao ideal grego da perfeição de corpo e alma...

Mas talvez nos falte algo... Não sei, preciso dialogar com minha parceira...